No próximo mês de setembro, a indústria de construção naval de Santa Catarina inaugura na prática uma nova e aguardada fase. Dois anos e meio após assinar um contrato de US$ 1,6 bilhão (quase R$ 9 bilhões) com a Emgepron, empresa pública que atua na gerência de projetos da Marinha do Brasil, o Consórcio Águas Azuis vai começar a construir em Itajaí a primeira de quatro fragatas classe Tamandaré. A produção das embarcações promete revolucionar não apenas o poderio militar brasileiro no Oceano Atlântico, mas todo o cluster naval dos arredores da foz do Rio Itajaí-Açu, que ainda busca uma recuperação após o baque causado desde 2014 pela crise na Petrobras e pela queda mundial do preço do petróleo.
A última fragata será entregue em 2029, mas desdobramentos do projeto devem continuar a movimentar a região ao longo de todo o ciclo de vida traçado para as embarcações, entre 35 e 40 anos – sem contar os planos de vender projetos similares para outros países da América do Sul. Além da gigante alemã thyssenkrupp Marine Systems, o Consórcio Águas Azuis conta com a participação da Embraer e sua subsidiária Atech. A base do projeto será o thyssenkrupp Estaleiro Brasil Sul (tkEBS), como foi rebatizado o estaleiro Oceana, adquirido em Itajaí pela empresa alemã em 2020.
Antes mesmo de começar a construir, o Águas Azuis já se tornou o segundo maior arrecadador de ISS de Itajaí, atrás de uma importadora e à frente da APM Terminals, principal arrendatária do Porto de Itajaí. Com 310 mil metros quadrados de área, o tkEBS passa atualmente por uma fase de setup, com revisão e adequação de sistemas e equipamentos, qualificação de processos produtivos e a construção, a partir de março, de uma unidade piloto estrutural dos navios (mock up), que deve servir para validar procedimentos e processos fabris das quatro fragatas da Marinha.
A produção será feita com pelo menos 30% de conteúdo local na primeira unidade e 40% a partir da segunda, proporcionando uma gradual transferência de tecnologia em engenharia naval para a fabricação de navios militares e sistemas de gerenciamento de combate e de plataforma em solo brasileiro. As fragatas serão baseadas no projeto alemão MEKO, já utilizado em 82 embarcações em operação em marinhas de 15 países.
“Tão importante quanto o movimento econômico do projeto é que ele traz tecnologias que colocam Santa Catarina no estado da arte do setor”, diz Mario Cezar de Aguiar, presidente da FIESC, que trabalha para a aproximação da indústria do Estado com as Forças Armadas (leia o box). A percepção é compartilhada pelas empresas do setor naval. “O projeto vai trazer emprego, renda, conhecimento e novas empresas, fomentando a criação de um cluster tecnológico naval”, afirma Leonardo Campos Freitas, assessor executivo do Sindicato das Indústrias da Construção Naval de Itajaí e Navegantes (Sinconavin).
Dois mil empregos diretos e 6 mil indiretos devem ser gerados no auge da produção das fragatas. Somado ao estoque atual de vagas dos outros estaleiros da região, o projeto deve ajudar a ultrapassar o recorde de empregos do auge do ciclo de óleo e gás, quando mais de 10 mil pessoas trabalhavam no setor.
Ocupando ambas as margens das últimas curvas do Rio Itajaí-Açu, a indústria naval de Itajaí e Navegantes viveu anos prósperos com a intensificação da exploração das jazidas do Pré-Sal na costa brasileira a partir do começo dos anos 2000. Naquele período, mais de 85% da produção brasileira de petróleo e gás já ocorria no mar, e eram investidos bilhões de reais em obras de ampliação e modernização da capacidade produtiva e construção de novos estaleiros em todo o País, atraindo investidores internacionais.
PODER DE COMBATE
Características das fragatas classe Tamandaré
107,2 metros de comprimento
Boca máxima de 15,95 metros
Deslocamento de 3,5 mil toneladas
Sensores de última geração
Lançadores de mísseis e torpedos
Recursos stealth, de redução de visibilidade ao radar
Capacidade para 136 tripulantes, um helicóptero e um drone
Novos nichos | Com a crise do óleo e gás o número de empregados no setor caiu 60%. Mais da metade dos estaleiros dos dois municípios – incluindo gigantes como a Keppel Singmarine, de Cingapura, e a holandesa Huisman – fechou as portas ou ficou em stand by. O próprio Oceana, moderno estaleiro inaugurado em 2013 e que hoje pertence à thyssenkrupp, estava desde 2018 parado. A exceção ficou para os estaleiros especializados em embarcações de lazer, como lanchas e iates, que cresceram no período. Quem dependia da indústria petroleira teve que se readequar e diversificar seus nichos de atuação.
Dois dos principais fornecedores do setor desde aquele período são a Navship e a Detroit Brasil, hoje os maiores estaleiros de Navegantes e Itajaí. Juntos, eles chegaram a deter 17% do market share na construção de embarcações de apoio, segundo dados de um relatório publicado em 2012 pelo BNDES.
A Navship foi fundada em 2005 pelo grupo americano Edison Chouest Offshore. No auge da produção de embarcações de apoio chegou a contar com 2.300 funcionários. Com a crise, o número caiu para 500. Mas o estaleiro seguiu ativo, trabalhando com a construção, reparo e conversão de embarcações próprias e de terceiros. E nos últimos dois anos a empresa começou a sentir uma melhora gradativa nos negócios, retomando encomendas interrompidas para a Petrobras e dobrando o número de empregados.
Desde novembro a Navship finalizou a construção de duas RSVs (ROV Support Vessel) para a estatal, a Paulo Cunha e a Bram Spirit, navios de alta tecnologia preparados para lançar e operar robôs submarinos (os ROVs) utilizados nas plataformas de exploração. Para 2022 está retomando a construção de um PSV, navio especializado em suprir as plataformas. “A empresa possui uma alta demanda de reparo e conversão para 2022, com o dique seco bastante ocupado. Novas demandas devem surgir em breve, em vista da necessidade da frota precisar ser constantemente atualizada”, aposta o gerente administrativo da Navship, Rafael Theiss.
Chilena | Braço de uma multinacional chilena, a Detroit Brasil foi inaugurada em Itajaí em 2002, e até o final do ano passado já havia concluído 115 embarcações, entre elas 17 PSVs para o setor de óleo e gás. Além do estaleiro em Itajaí, onde são produzidas embarcações de alta tecnologia como os wellboats (leia o box), a empresa também atua em toda a costa brasileira através da Starnav, considerada um dos maiores players nacionais do setor de apoio marítimo e portuário.
A diversificação e o fato de contar com uma frota própria fizeram com que tanto a crise de 2014 quanto a pandemia tivessem impacto relativamente reduzido nos negócios. Segundo o diretor administrativo e financeiro corporativo Juliano Zimmermann de Freitas, desde a sua fundação a Detroit não teve um dia de inatividade. Apesar disso, o número de funcionários hoje é menos da metade do que era em 2016, quando foram concluídas as encomendas dos 17 PSVs. “A partir de então sentimos a ausência de novos pedidos. Mas, para os próximos anos, teremos um processo de renovação e acreditamos na retomada da indústria do petróleo, que é essencial para o nosso setor crescer”, analisa o executivo.
De acordo com a Emgepron, responsável pelo projeto das fragatas da Marinha, o ciclo da indústria de óleo e gás deixou um legado de mão de obra especializada que pode ser treinado para atender às necessidades do projeto. Além disso, segundo relatório encomendado pelo município de Itajaí à consultoria Neoway, existem quase 3.500 empresas ligadas ao setor naval e outros potenciais fornecedores, como empresas de construção civil, num raio de 10 quilômetros a partir do tkEBS.
A Prefeitura de Itajaí, por seu lado, trabalha nas contrapartidas ao projeto. De acordo com o secretário de Desenvolvimento Econômico do município, Thiago Morastoni, projetos de mobilidade devem criar quatro quilômetros de novas avenidas na região dos estaleiros, em um investimento de R$ 60 milhões. “O contrato com o Consórcio Águas Azuis traz oportunidades para o trabalhador de Itajaí e de toda a região. O município se mostrou aberto às demandas de mobilidade e até se dispôs a auxiliar na contratação e qualificação de mão de obra. Somos uma cidade com rico histórico na construção naval e com possibilidades reais de parcerias entre governos e universidades, fomentando ainda mais a inovação”, avalia o secretário.
Dinamismo | O secretário de Desenvolvimento Econômico e Receita de Navegantes, Rodrigo Leonardo Vargas Silveira, também acredita nos benefícios que a construção das fragatas trará para o outro lado do Rio Itajaí-Açu. “Vai também absorver mão de obra daqui e mexer com a economia de toda a região, trazendo mais consumo e dinamismo”, avalia. Para entrar no jogo, uma das medidas adotadas no município foi baixar o ISS para empresas de tecnologia de 5% para 2%. “A cidade passa a competir melhor por empreendimentos do setor, que devem ser atraídos em virtude do projeto da Marinha e outros”, aposta Silveira.
TECNOLOGIA AVANÇADA
Papel de cada empresa na construção das fragatas em Itajaí
Thyssenkrupp: Fornecerá tecnologia naval da plataforma de construção de navios de defesa da Classe MEKO, que já opera em 15 países
Embraer: Integrará sensores e armamentos ao sistema de combate
Atech: Fornecedora do Sistema de Gerenciamento de Combate (CMS) e do Sistema Integrado de Gerenciamento da Plataforma (IPMS)
Engepron: Desenvolve e gerencia projetos de engenharia naval para a Marinha do Brasil. Conta com escritório dentro do estaleiro em Itajaí
Alerta para fornecedores
Setor de Defesa oferece oportunidades para a indústria catarinense
A construção das fragatas da Marinha é um passo importante para a consolidação de uma indústria voltada ao setor de Defesa em Santa Catarina. “O Estado tem todas as ferramentas para se tornar o maior polo de empresas estratégicas de defesa do País”, afirma Cesar Augusto Olsen, presidente do Comitê da Indústria de Defesa de Santa Catarina (Comdefesa), órgão consultivo da FIESC que opera como interface entre as demandas das Forças Armadas e a indústria.
Atualmente há 14 empresas catarinenses estratégicas de defesa, e mais quatro estão em fase de homologação. Para ingressar neste grupo a empresa precisa cumprir requisitos exigidos pelas Forças. “O projeto das fragatas será o grande impulsionador dessa missão. Ele vai trazer outros, não apenas da Marinha. Quando tivermos 50, talvez cem empresas no Comdefesa, isso vai chamar ainda mais a atenção das Forças Armadas, que não estavam a par da nossa qualidade em setores como o de hardware e software, por exemplo”, destaca Olsen.
Uma boa chance para as indústrias ficarem a par do potencial de negócios gerados pelo projeto das fragatas vai se abrir nos dias 19 e 20 de maio, quando a Base Aérea de Florianópolis receberá a segunda edição da SC Expo Defense. O evento, idealizado pelo próprio Comdefesa, tem presença confirmada do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, além de diversos expositores, entre eles o Águas Azuis.
A viagem dos salmões
Embarcações construídas em SC revolucionam transporte de pescados no Chile
A Detroit Brasil atravessou a pandemia focada em um de seus projetos mais inovadores, entregando nos últimos anos dois wellboats, embarcação recheada de tecnologia e automação voltada para o setor da aquicultura. As duas unidades já navegam pela costa do Chile, onde a matriz da empresa, a Detroit Chile, comanda mais de um terço da logística de produção de salmão do país. A indústria é uma das maiores do Chile: emprega 60 mil pessoas e produz 25% do salmão consumido no mundo.
A função dos wellboats é transportar alevinos com seis meses de idade das fábricas na costa para as fazendas marinhas e, mais tarde, fazer o caminho inverso, trazendo peixes adultos vivos para serem processados e embalados nos frigoríficos. Cada navio pode levar até 270 mil quilos de pescado. “A temperatura, o volume de água, tudo é monitorado constantemente, com controle fitossanitário, para evitar que o peixe se disperse e se estresse durante a navegação, o que alteraria a qualidade. São barcos ainda mais tecnológicos que os de offshore”, garante Juliano Zimmermann, diretor da Detroit Brasil.
O primeiro wellboat, entregue em julho de 2020, foi construído com um parceiro da Noruega, país líder na produção de salmão no mundo. Já no segundo barco, entregue em 2021, a tecnologia e a automação foram desenvolvidas em parceria com a WEG. Dois outros wellboats estão em produção no estaleiro em Itajaí.