A Resolução 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça trouxe novas diretrizes e procedimentos quanto ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, a fim de melhor assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário. Essa proteção aos povos indígenas está em conformidade com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que em seu art. 10 afirma a necessidade de observância das características econômicas, sociais e culturais dos povos indígenas quando da aplicação de sanções penais, bem como a preferência a outros tipos de punição que não o encarceramento.
O CNJ editou, inclusive, uma cartilha com orientações a tribunais e magistrados para cumprimento da Resolução, em que se deu especial atenção à mulher indígena. Como regra, a aplicação de medidas penais contra mulheres deve privilegiar medidas não privativas de liberdade. Ressalte-se que as mulheres indígenas encarceradas representam apenas 1% (um por cento) da população carcerária feminina presa no Brasil de acordo com dados do Infopen (2018, 2ª ed.). Segundo o próprio CNJ, os casos envolvendo mulheres indígenas exigem da autoridade judicial o reconhecimento de que elas sofrem múltiplas formas de discriminação que ocasionam uma maior dificuldade de ter acesso a direitos, bem como para exercer plenamente sua defesa.
Ainda, são as mulheres as principais cuidadoras dos filhos, de idosos e de pessoas com deficiência, e seu encarceramento afeta, portanto, toda a comunidade indígena. Daí porque se recomenda que a prisão domiciliar pode ser aplicada para a mulher gestante, mãe ou responsável por crianças ou adultos com deficiência, na hipótese de decretação de prisão preventiva da mulher indígena. A comunidade indígena tem destacado papel, portanto, na aplicação da sanção penal. Até mesmo o acompanhamento da execução das mulheres indígenas beneficiadas pela progressão de regime será realizado em conjunto com a comunidade.
Além dessas medidas, a resolução garante que o tratamento previsto será dado a qualquer pessoa que se autodeclare como indígena, em qualquer fase do processo criminal ou na audiência de custódia. Além disso, em caso de autodeclaração como indígena, a autoridade judicial deverá indagar acerca da etnia, da língua falada e do grau de conhecimento da língua portuguesa, e as cópias dos autos do processo deverão ser encaminhadas à regional da Fundação Nacional do Índio – Funai mais próxima em até 48 (quarenta e oito) horas. Ainda, a identificação da pessoa como indígena, bem como informações acerca de sua etnia e língua por ela falada, deverão constar no registro de todos os atos processuais. Inclusive, em caso de necessidade, é garantida a presença de intérprete, preferencialmente membro da própria comunidade indígena.
Outra medida de equidade e respeito à cultura, às crenças, aos costumes e às tradições indígenas está na possibilidade de realização de perícia antropológica, que fornecerá subsídios para o estabelecimento da responsabilidade do indígena. Nela, se informará a qualificação, a etnia e a língua falada pela pessoa acusada, as suas circunstâncias pessoais, culturais, sociais e econômicas, a descrição dos usos, dos costumes e das tradições da comunidade indígena a qual ela se vincula e o entendimento da comunidade indígena em relação à conduta típica imputada, bem como os mecanismos próprios de julgamento e punição adotados para seus membros. Assim, o laudo antropológico deve conter a correspondência entre a conduta praticada e os costumes, crenças e tradições da comunidade indígena, de tal forma que a responsabilização de pessoas indígenas deverá considerar os mecanismos próprios da comunidade indígena a que pertença a pessoa acusada, mediante consulta prévia.
A Resolução CNJ 287/2019, portanto, reconheceu a importância de um tratamento diferenciado para os indígenas, em razão de suas especificidades culturais, com vistas a garantir igualdade dos povos indígenas no acesso à Justiça, bem como, teve o cuidado de dar o devido destaque ao papel das mulheres indígenas em suas comunidades para a continuidade e sobrevivência de seus povos.
Autora: Débora Veneral é diretora da Escola Superior de Gestão Pública, Política, Jurídica e Segurança do Centro Universitário Internacional Uninter.